20 setembro 2009

Diário de Campanha - Primeira Guerra Mundial



DIARIO DE CAMPANHA

Do Capitão X...


«Terça-feira, 1 de Maio. - Esta manhã, sou acordado em sobresalto na mess de officiaes inglezes, onde fui aboletado e acolhido com a mais idalga gentileza, pelas detonações precipitadas de uma bateria proxima. Na soleira da porta um grupo de alferes e tenentes britanicos miram o ceu azul sem uma nuvem. Um aeroplano allemão segue por cima das nossas linhas. No ar, em volta d'êle e sem ó atingirem, estalam granadas. Elle passa. Dez minutos depois deslisa a toda a velocidade, n'uma estrada perto, uma bateria automovel de anti-aeros, a que deixou escapar a presa. Vamos ter novidade.

Pelo meio dia a brigada ingleza a que a minha companhia está adida communica-me que devemos estar formados ao cahir da tarde sobre a estrada e em pequenos grupos para seguirmos para as trincheiras. Pouco antes da hora marcada a estrada que havemos de seguir, começa a ser bombardeada com violencia. Consequencia das informações recolhidas de manhã pelo laube. Chega-nos a todo galope da sua mula um chefe de carro a communicar-nos que uma granada atingiu as viaturas que seguiam para o parque de transportes. Um morto, dois feridos de outra companhia portugueza que partilha o nosso acantonamento e hade partilhar o nosso sector. Começo a dividir e a ordenar a minha gente. Continua o fogo de barragem allemão. A noite vae cahindo e aproxima-se a hora. Surge de automovel uma banda de musica ingleza e, quando os primeiros grupos se põem em marcha pela estrada bombardeada, rompe a Portuguêsa.
Momento impressionante, Officiaes e soldados inglezes veem desejar-nos boa sorte.

Os grupos marcham espaçados, mantendo as distancias, condusidos por guias Inglezes. Um pouco antes da barragem cortamos pelo campo perpendicularmente á estrada e vamos atingir uma outra paralela. Vêem-se estalar as granadas perto e, á luz poente, nos campos e sob a metralha, continuam a sua faina agricola os habitantes que ainda permanecem n'esta região. Um grande cavallo preto arrasta um arado sobre o qual se senta, tranquilamente cachimbando, um velho de cabellos brancos. Na estrada junto de nós passam carros de aprovisionamento. À nossa esquerda uma bateria, escondida n'um arvoredo, riposta ao fogo allemão. A certa altura fazemos alto para colocar em posição as mascaras contra os gazes asphixiantes. Continuamos a marcha e não tarda que deixemos a estrada para seguir um caminho coberto á margem d'ela. Estamos já na terceira linha ingleza e vamos calcando as passadeiras de madeira de que havemos de calcar kilometros. Tornamos a atravessar a estrada e entramos finalmente n'uma trincheira de communicação. E então uma longa, interminável marcha n'um corredor onde só cabemos a um de fundo e que de cinco em cinco metros muda de direcção. De quando em quando a trincheira alarga e tem uma banqueta. Outras vezes descobre-se a abertura de um abrigo. O sol dos ultimos dias ainda não secou toda a água do Inverno e na escuridão succede fugir-nos um pé da passadeira e enterrarmo-nos na lama até ao tornozelo. Passam alguns ratos galopando assustados. Sobre as nossas cabeças o ceu é cheio de estrellas e, em volta de nós, as espingardas automáticas e as metralhadoras, procuram com o seu tiro indirecto ir apanhar nos caminhos descobertos, a esta hora classiea de render serviços, os grupos de homens passam por acaso. Estamos chegando á segunda linha e ahi os grupos vão ficando distribuidos pelos abrigos e pelos postos inglezes. Um dos meus pelotões segue para a primeira linha. Mais trincheiras sempre eguaes.

Um sargento inglez, a certa altura, detem-me e com um gesto diz-me na mesela de inglez e mau francez, que é o nosso idioma n'estas paragens:
- « Captain ! Promenade avec moi...
Sigo-o. Caminha-mos dez minutos ainda. Chegamos a um terrapleno. Cortámos á esquina de uma rua - Hun's Street - e paramos defronte de um abrigo que tem uma taboleta á porta: Comanding officer. Estou no posto de comando. Baixo-me para entrar. À luz das velas, dentro d'um casinhoto de tres metros de largo por outros tantos de fundo, dois olhos claros me sorriem n'uma face rosada e moça, uma mão solida se estende para a minha e uma voz alegre com um forte sotaque sauda-me:
- « Bonsoir, Monsieur.
E o captain G... de um regimento que usa o nome de duas bellas cidades inglezas. Falla a very litlle de francez. Eu fallo outro tanto de inglez. Havemos de nos entender perfeitamente. N'um canto da caverna está dobrado em varias partes para poder caber o alferes R... O capitão tem vinte e quatro annos. O alferes vinte e um. Ambos dois annos de guerra e presentes no Somme o anno passado. Perguntam-me se jantei. Passados cinco minutos estou jantando. Apenas corta o silencio de vez em quando o tie-tae seco das espingardas e das metralhadoras. Conversamos. È a primeira vez que o capitain G... tem tropas portuguezas no seu sector de companhia. Explica-me que os meus homens já estão todos distribuidos pelos varios postos e que farão todo o serviço dos soldados inglezes. Tomado o chá e acêso um cigarro, peço para percorrer as trincheiras e ver a minha gente.

È cedo ainda: a ronda do capitão começa á meia noite e são onze se tanto. Examino então no mapa das trincheiras a disposição do sector e o meu camarada explica-me a posição dos postos especiaes, o raio de acção dos postos de observação, o campo das nossa metralhadoras. O chão que pisamos é historico. Em*** travou-se n'este local uma grande batalha. As nossas trincheiras serpenteiam atravez das ruinas do que foi uma pequena e linda cidade da qual não restam senão montes de pedra e de tijolo e algumas paredes ainda de pé, onde se organisaram abrigos e postos.
Chegou a meia noite. Sahimos e começamos a caminhar, a caminhar. De longe em longe, taboletas. As trincheiras tem nomes, alguns mesmo illustres, muito illustres: Oxford-street, por exemplo. Cortamos a Churche-road, ao Caminho da Egreja. Da egreja da cidade resta apenas um monte de escombros e um Christo que já andou em illustrações e magazines. Alguns santos, uma virgem, estão postos sobre campas de soldados inglezes. No que talvez tivesse sido uma capela florida, está um ninho de metralhadoras. Subo ás escuras os degraus d'uma escada de mão. Sobre o cano negro das armas desbruça-se a vigilancia dos serventes e por uma estreita abertura ve-se o campo mutio claro e lá adeante, a cem metros se tanto, a linha de trincheiras allemãs. Outras vidas alli palpitam, outros olhos nos espiam e nos esperam.

Para a nossa direira erepita uma espingarda automatica. Retumba um obus de trincheira. Ouve-se o silvo muito especial da granada. Cahiu perto, muito perto, na nossa primeira linha, diz-me o capitão. Esperamos. Outras detonações, sete n'um quarto de hora. Algum signal tiveram na trinchiera fronteira que lhes indicou um objectivo. Prosseguimos. Passamos a um posto de observação; um dos meus soldados espreita pelo periscopio emquanto um soldado inglez sorri. Colhemos informções. As granadas cahiram mais adeante. Continuamos. Espreito nos abrigos. Os meus homens lá estão e nos que não cabe a vigilancia, esses dormem tranquilamente ao lado dos seus camaradas. Cruzamos mais adeante fachinas inglezes e portuguezes condusindo chá quente, Indago. Andaram debaixo do fogo. Chegamos finalmente ao ponto bombardeado.

Um tenente de ronda conta que as granadas cahiram em volta. Uma acertou n'um charco alli visinho e encgeu-o de lama. Mostra-nos o seu uniforme todo salpicado.
Pergunto que tal se portaram os meus soldados adidos ao posto.
- « Splendid ! Very well ! No panie...
Entrevisto a minha gente.
- « Ah ! meu capitão ! Elles mandaram ahi umas garrafas de litro; mas cá a gente não cortou prego...
A quem ignore o portuguez da zona guerra, direi que os projecteis são dividos conforme o tamanho em barris de almude, garrafas de litro e copas de meio litro. Cortar prego é ter medo.
Sorrio satisfeito. É a primeira vez que os meus soldados, como eu de resto, estamos tão em contacto com o perigo. A experiencia é satisfatoria.
O capitão segue de mãos nos bolsos e cachimbo na bocca.
A certa altura pergunta-me se quero sahir da trincheira e ir fora do parapeito a um posto de observação collocado n'umas ruinas. Respondo-lhe que irei onde êle fôr. Caminhamos atravez da noite clara uns trinta passos.

Dois homens apenas cabem no abrigo que só é ocupado de noite. Espreitamos pela vigia. Na nossa frente temos um bosque, cuja historia singular e tétrica o capitão me conta com toda a sua fleugma. Voltarmos para as trincheiras e, apoz duas horas e meia de marcha, tendo pisado kilometros de passadeira, conversado varias vezes sentados a descançar sobre banquetas desertas, regressamos ao posto de commando. Ha duas camas: rectangulos de madeira sobre os quaes se estendeu rede de arame e que assentam a tres palmos do chão sobre caixotes.
Deito sobre mim o meu capote, o capitão enfia-se no saco da sua valise, apagam-se as velas depois de uns goles de whisky e adormeço d'alli a pouco, admirado de ter somno.»



PORTUGAL NA GUERRA - Revista Quinzenal Ilustrada
nº 1 - 1 de Junho de 1917; Colunista Capitão X, que por motivos óbvios mantém sigilosa a sua identificação

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