04 maio 2009

Jaime Cortesão: médico do Corpo Expedicionário Português


Jaime Zuzarte Cortesão (Ançã, Cantanhede, 29 de Abril de 1884 — Lisboa, 14 de Agosto de 1960), foi um médico, político, escritor e historiador português.

Estudou no Porto, em Coimbra e em Lisboa, vindo a formar-se em Medicina em 1909. Lecionou no Porto de 1911 a 1915, quando foi eleito deputado por aquela cidade. Em plena Primeira Guerra Mundial defendeu a participação do país no conflito, tendo participado como voluntário do Corpo Expedicionário Português, no posto de capitão-médico, tendo publicado as memórias dessa experiência.

E dessas memórias extrai-se as seguintes passagens:

«Lá estava o soldado deitado na lama. Quando seguia, aqui perto, pim! uma bala dum-dum de metralhadora entrou-lhe pela boca e estoirou. Trouxeram-no em braços e deitaram-no ali. Debrucei-me. A sua cabeça era uma massa sangrenta e chata estendia no chão. Lembrava uma destes balões vermelhos de caoutchouc com que as crianças usam brincar e que tivesse estoirado. Perdera de todo a forma primitiva e humana. Este milagre de construção que nós trazemos sobre os ombros estava ali esborrachado sobre a terra, alastrando carne, miolos, sangue.
No dia seguinte veio outro, tal e qual na mesma. Só a bala entrara pelo temporal.»


La Lys

« A BATALHA DO LYS 9 de Abril de 1918
Lázaro, ergui-me do sepulcro. Vivo com a frescura de emoções de quem renasce.
Já vejo alguma coisa e dou o meu passeio pelo corredor do hospital.
Mas, porque a minha memória foi profundamente abalada e um véu de sombra me empana ainda os olhos, o mundo e a vida, onde eu reentro; surgem do Caos, brilham a custo, através de um nevoeiro espesso e primitivo. Não vejo as linhas contornais das coisas e dos seres. Lobrigo apenas manchas paradas e sombras que se movem.
Voltou-me com violência, o desejo de viver.
Consequentemente o interesse pelas novas da guerra.
Das nossas tropas vem a notícia de mais um raid, realizado com grande valentia. O Américo Olavo consegue levar a sua gente até á segunda linha boche, mas a noite chuvosa, a terra encharcada, e mais do que isso a rápida retirada dos alemães, não lhe dão os felizes resultados que o seu valor merecia.
Com este é o terceiro grande raid das nossas tropas, pois já antes Olavo, o capitão Vale de Andrade realizara uma incursão ás linhas inimigas com muito e feliz arrojo.
De toda a parte chegam sinais de que a luta se intensifica. Espera-se, a cada hora, que a ofensiva alemã, iniciada na direcção de Amiens se generalize a outros pontos da frente.
Mas - coisa inevitável - os nossos soldados começam a revoltar-se. Sim, inevitável. Pois se de Portugal não mandam reforços e nos esquecem, e os altos comandos, sem a coragem de protestar por todas as formas contra esse desprezo, fazem todos os dias aos soldados promessas de descansos e licenças que nunca chegam, e exigem alguns milhares de homens o dolorosíssimo esforço, que nos outros exércitos se distribui por centenas de milhares, que menos se poderia esperar?
O desfalecimento, a exaustão, o desespero atingiram o auge nas nossas fileiras.
Hoje enfim as nossas tropas da frente vão ser rendidas em massa. È uma deslocação total para a retaguarda. E como não há portugueses para essa rendição, o nosso pequeno sector vai cair em mãos dos ingleses, ficando nós sem um soldado nas linhas!
Eu estou no Hospital das Doidas, em St. Venaint, numa grande parte do qual se improvisou o nosso Hospital de Sangue n.º 2. È um vasto conjunto de casas apalaçadas, dispersas num grande parque, em cerca.
Há ali algumas centenas de mulheres loucas.
Às quatro horas da manhã, deitado na minha cama, acordo ao trovão estupendo duma granada de 31 ou 38, estoirando próximo. O alto e vasto edifício baila sobre os alicerces, e os grandes estilhaços, como bolidos incendiados, rugem e silibam, sinistros, cortando as paredes e os telhados. Depois outra. E não param. De espaço a espaço, um abalo fundo de terramoto é o espadanar estridulo da metralha. Para as linhas um rebentar de tempestade oceânica raiva, furibundo. O coração aperta-se á lembrança dos que andam àquela hora sobre as altas ondas de fogo e terra.
Quase todos os doentes, que podem levantar-se, vagueiam de luz acesa pelo hospital. Médicos e enfermeiros, tudo se ergueu. O trovejar da planície enche as almas de assombro. Só quando dealba a manhã, e as primeiras grandes novas chegam, eu e o Frazão nos erguemos.
Ás dez da manhã sabe-se já que os alemães, numa ofensiva de grande estilo, cuja largueza é por enquanto difícil de avaliar, romperam as nossas linhas e avançam.
Os feridos entram constantemente.
As faces andam pálidas e espantadas. A batalha aproxima-se. Aumenta o seu marulho tonitruante. As novas que chegam rasgam a cada passo o âmbito da tragédia.
A larga cerca do hospital povoou-se pouco a pouco de vultos, clamores e autos, ofegando.
Chego á janela: uma turba que a bruma do dia afunda invadiu as ruas do parque e a antiga solidão de grupos gesticulantes, acampamentos de acaso, de mantas, máscaras, mochilas e armas, abandonadas sobre a relva dos talhões. Mais e mais grupos entram. Uma ambulância automóvel desliza lentamente e para em baixo á porta. Do fundo; com vagar, saem em braços volumes humanos, as cabeças e os membros descaídos. Os meus olhos, cuja névoa de sangue deixa apenas entrever as coisas, desta distância enxergam tudo aquilo em sombras moventes.
Com o giro das horas inunda-se o parque; a turba vem ás ondas e reflui até se afogar nas casas e nas áleas, e cada vez mais o rumor, que exala, me inquieta e aflige:
- Vai encher-se tudo com feridos - dizem.
Resolvo então ir ajudar os camaradas, que lá em baixo se estenuam na faina cirúrgica. Esqueço a minha trémula convalescença e desço, agarrado ao corrimão, as escadas que levam á cirurgia.
- A meio do ultimo lanço chega-me, lá do fundo dos vastos salões, um bafo quente de fornalha e borborinho confuso.
Entro na primeira estância: regorgita de feridos, lançados em macas, a esmo sobre o ladrilho do chão, de lés-a-lés. Ao primeiro relance lobrigo apenas, lançada por terra, a massa azul cinzenta das fardas, manchada de lama e sangue.
Ouve-se um remexer dorido, gemidos baixos, rouquejos. E logo, distintamente, salta-me aos olhos a visão de um grupo tragicamente imóvel, ali ao pé, rente a mim, e á orla do amontoado humano: é um padre que reza, ajoelhado, as orações de ultima hora, dobrado sobre um vulto estendido e inerte com uma face branca e fria de gelar.
O meu olhar, que sai da escuridão recente, ao encontrar-se de novo com o Mundo, cerra-se aflito e atónito.
Para seguir ás salas da frente é mister entrar num cortejo de soldados, sopesando um macas mutilações humanas. Ali trabalham sem descanso três equipes de operadores.
Lançados ao acaso sobre as macas, os feridos de mais gravidade esperam a sua vez. Um cheiro pesado e morno a éter, sangue e entranhas violadas entontece e engulha. Á beira deste ou daquele pingam nascentes de sangue. O chão é todo manchado pelo rio vermelho da vida extravasa.
Oh! mas este odor a matança é intragável. Paro, hesito. Não, não posso. È demais para as minhas forças débeis. E depois, estes gritos! Alguns pasmodiam queixas lúgubres. E, a espaços, forma-se um coro desgarrado de apelos e uivos, como de reses mal abatidas.
Um homem com a cara de cor de chumbo e lama, sacode no ar um coto de braço empanado, todo rútilo de sangue, e implora, uivando:
- Não me deixem morrer! Tenham pena de mim!
Ali, para um canto, caiu uma horrível massa humana ensanguentada e informe; não se lhe vê a cabeça, todavia aquilo geme numa suprema despedida, muito baixinho, de cortar o peito:
- Ai! minha rica mãezinha! - como um degolado, cuja voz, tão sentida é, nascesse do próprio coração.»


Memórias da grande guerra,
de Jaime Cortesão, [1919].
BNP Esp. E25/17

Assinatura de Jaime Cortesão



Bibliografia:

Memórias da Grande Guerra (1916-1919), Jaime Cortesão

Biblioteca Nacional de Portugal, Espólios

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